terça-feira, 15 de maio de 2012

Cafinfim

Mais uma crônica enviada pelo nosso ilustre Hóspede Edmar Oliveira
Segundo o dicionário Michaelis, Cafinfim significa: piolho de galinha; membro de certo partido político, ou judeu: cristão novo.
Pobre Antônio. Nasceu subnutrido no sertão piauiense, era tão magro, mas tão magro que demorou dois anos para começar a andar. Seus membros contrastavam com sua grande cabeça. Olhos esbugalhados, rosto fino, orelhas de abano e umbigo saliente. Antônio era o que se poderia chamar de sobrevivente. Numa região, com grande taxa de mortalidade infantil, era difícil imaginar que ele pudesse sobreviver.
Quinto filho de uma prole de sete, Antônio foi o único a nascer com essas características de menino fadado a viver pouco. Os parentes e amigos da família diziam: “Comadre, batiza logo esse moleque para ele não morrer pagão!”.  A mais preocupada era Dona Bela, vizinha da família de Antônio, uma senhora gorda, de faces rosadas e esposa de um judeu alemão foragido durante a primeira Guerra Mundial.
A mãe de Antônio, católica fervorosa e participante ativa de novenas em louvor ao Divino Espírito Santo, ouviu os conselhos e tratou logo de batizar o menino. Dona Bela foi escolhida como madrinha. Afinal, foi ela quem puxou o cordão pela salvação do pobre Antônio. Ela não tinha dúvidas que aquele pequeno ser esquelético, partiria desta para outra a qualquer momento.
Antônio não morreu, seu batizado foi uma festa. Muitas brevidades feitas pela madrinha Bela, umbuzada e beiju ou tapioca com manteiga de litro. Houve até dança de forró ao som da sanfona do compadre Agripino. A poeira subiu no quintal de chão batido. As irmãs de Antônio se emperiquitaram todas para o evento. Compadre Quirino trouxe uma cachaça lá do pé-de-serra para os mais velhos. Sempre com recomendações da mãe de Antônio para evitar os abusos. Ela detestava bebida e tinha receio que seu filho mais velho enveredasse pelo caminho do vício; já bastava seus irmãos que além da bebida eram viciados em jogo de baralho.
A vestimenta típica para meninos ou meninas naquela idade era uma camisola feita de morim, um tecido branco e cheia de goma, sem nada por baixo. Antônio passava o tempo todo vestido nessa indumentária, sempre com ventinho a favor.  Era um verdadeiro serelepe. Não andava, mas engatinhava pela casa de chão batido.
Certo dia, os primeiros passos aconteceram finalmente. De repente, para surpresa geral, aquela figura mais parecendo um fantasma, desfilou cambaleante, exibindo o barrigão estufado e ar de vencedor. Foi o maior show de tombos e ralações que se tem notícia. A ordem era não acudir. Agora ou vai ou racha, dizia sua mãe.
Quase rachou, mas o teimoso venceu mais um desafio. Ele só não escapou do apelido que lhe deram. Uma das irmãs, de forma jocosa o comparou a um piolho de galinha, também conhecido como cafinfim. Estava assim rebatizado o nosso herói. Esse apelido o acompanharia por muito tempo.
Tempos depois, agora com seis anos e ainda magérrimo, suas birras e calundus não eram mais tolerados pela sua mãe e irmãs. Além do clássico cafinfim, elas também apelavam para as palmadas na bunda. Seu pai era o único que as vezes vinha em seu socorro. Talvez pela fragilidade, seu pai sempre o presenteava com moedinhas que ele gastava na vendinha do seu Vinvim. Um velhinho careca, de faces redondas e rosadas, óculos enormes, assemelhando-se mais a um duende.
Nem sempre acontecia esse banquete de guloseimas. Uma de suas irmãs o tapeava, trocando suas moedas por saquinhos cheios de folhas de malva com a promessa que no futuro essas folhas se transformariam em grandes árvores cheias de moedinhas. Com olhos de gulodice tão grandes quanto sua barriga, o inocente Antônio caia na tapeação da esperta mana que se fartava.
Antônio adorava a casa onde morava, feita de alvenaria, ela tinha um detalhe intrigante; na parte externa apoiada na viga principal da cumieira e fincada no chão, havia um tronco de mulungu sustentado praticamente toda a casa. Só muito tempo depois ele soube que aquele tronco era para evitar o desmoronamento da casa em dias de chuvas com vento forte. Seu pai não era engenheiro, mas sabia das coisas.
            A casa tinha um quintal enorme. Era nesse quintal de chão batido que nas noites quentes dos finais de semana  se reuniam os vizinhos para papearem, comer brevidades feitas pela madrinha Bela e ouvir suas longas estórias. Antônio adorava a estória: “cinco negos brancos e seus amigos cinco negos pretos”.

Nessas noites de céu estrelado e sem nuvens, era comum verem-se estrelas cadentes riscando o céu em semicírculos, como se fossem fogos de artifício. Os mais velhos quando inquiridos, diziam que aquilo era obra de Deus depurando o Universo. Antônio como as demais crianças tinham medo de que alguma delas caísse na terra.
Os jovens, já com intenções de namoro, gostavam de jogar fiodó. Formavam uma roda e acendiam um palito de fósforo. O jogo consistia em ir passando esse  palito de mão em mão, ainda aceso e dizendo as palavras: “fió? Oi! Quer comprar fió? Quero! E se fió morrer? Pagarei fiodó!” Na mão de quem o palito apagasse ou morresse a pessoa tinha que  passar por um castigo. Poderia ser, sem violência, uns “bolos” de palmatória de madeira. Ao vencedor, ou vencedora as honras de receber os aplausos dos vencidos.  Antônio adorava apreciar esse jogo e sempre pensava: “quando eu crescer, nunca vou pagar fiodó”.
Nesse ambiente de simplicidade, os dias passavam. Todos trabalhavam solidariamente para se prevenirem das estiagens, fenômeno comum no sertão nordestino. Os homens furavam poços, também chamados de cacimbas. O acesso a água era através de escadas cavadas na própria cacimba. O transporte era feito em cabaças atreladas a cangalhas no lombo dos jumentos. Previdentes, o povo da região represava as águas das chuvas em pequenos açudes. Servia principalmente, para dar de beber aos animais nos longos períodos de estiagem. A polpa do mandacaru triturada, servia como alimento aos animais, além do que, também ajudava na hidratação por ser rica em água.
Essas coisas não interessavam a Antônio. O que ele mais gostava era de brincar com Deusdeti, filho do Pedro Véio, um lavrador de rosto enrugado e manco. Diziam que esse problema foi devido a um coice de jumento num de seus momentos de bebedeira.
Antônio e Deusdeti passavam horas e horas embaixo de um velho umbuzeiro, brincando de vaqueiros, onde os bois eram ossinhos de passarinhos e os currais, sementes de umbu. Quando brigavam, quase sempre dava empate. Ali era a dupla “fome com vontade de comer”. Equivaliam-se no porte físico. O xingamento mais usado era: Cão. Ofendia muito porque aprenderam que Cão era o diabo. Quase sempre essas rusgas terminavam com o couro das alpercatas “esquentando” as bundas deles. Apesar dessas briguinhas, eram amigos inseparáveis e frequentavam as aulas de alfabetização da tia Raquel, a única professora do lugar, casada com um tio de Antônio.
A mãe de Antônio era uma senhora muito destemida e forte. Com a morte do marido, Seu Luiz Meada, assumiu ás rédeas da família. Nessa época já com seis filhos e grávida do sétimo, não fraquejou, contando apenas com o trabalho dos filhos mais velhos, onde a primogênita tinha apenas treze anos. Ela exerceu toda sua liderança de mulher criada no agreste e acostumada as desventuras da vida. Nunca ninguém a viu choramingando ou maldizendo da vida. Foram dela, as palavras que até hoje soam como ensinamento para todos os filhos: “Deus nunca nos dá um fardo maior do que possamos suportar”.
Embora, ainda crianças e alguns já adolescentes, todos tinham tarefas a cumprir. Cabia a Antônio cuidar das panelas no fogão, ele se sentia o mais importante e pensava: “Se o feijão queimar,ninguém come”.
Tempos depois, uma grande estiagem abalaria o planejamento preventivo dos moradores. Foram muitos meses sem chuvas. A água normalmente escassa, agora era quase inexistente. Para consegui-la, tinha-se que se deslocar para lugares cada vez mais distantes. Os animais emagreciam e alguns morriam.
Aquilo, que se prenunciava como uma grande tragédia, foi o motivo que faltava para a mãe de Antônio tomar a decisão que já alimentava há muito tempo. Sair dali e rumar para um lugar onde seus filhos pudessem crescer e se tornarem pessoas em condições de vencerem na vida. Ela não queria que eles fossem apenas vaqueiros ou mulheres cuidando de uma penca de filhos. Ela tinha pouco estudo, mas era sábia. As dificuldades futuras, ela tinha consciência de como enfrentá-las. Vendeu sua pequena propriedade para seu cunhado e preparou sua viagem com a penca de filhos para o sudeste, mais especificamente São Paulo. Escreveu aos irmãos que já moravam no “sul maravilha” e organizou a partida.
Na partida do lugarejo, muita tristeza e choro. Dona Bela sentia a perda do seu afilhado e rezava juntamente com todos vizinhos. Esse ambiente de dor, também atingiu o pequeno Antônio. Indiferente a essa coisa de futuro, sabia que nunca mais iria poder brincar embaixo do seu querido umbuzeiro com seu amigo Deusdeti. Não iria mais aprender a atirar pedras com bodoque, coisa que seu irmão fazia com destreza, para afugentar os periquitos do milharal. Não iria mais comer os doces da vendinha do seu Vinvim. Não iria mais andar no lombo dos jumentos Futuca e Azulão. 

Na medida em que os cavalos se afastavam, Antônio montado na garupa e abraçado ao seu irmão, olhava para trás, vislumbrando já à distância, aquilo que outrora fora seu paraíso. Agora, a vendinha do seu Vinvim era apenas um pequeno ponto no horizonte. Na sua mente como um canto do cisne, ecoavam as palavras: “fió, Oi! Quer comprar fió? Sim! E se fió morrer?...”.


Edmar de Oliveira - Junho/07

Um comentário:

  1. Uauuuu.... e haja imaginação, ein?! Da onde o senhor tirou td isto??? parece ser tão familiar.... escreve com tanta naturalidade...~Mas então, pra variar, foi SURPREENDENTE!..... adorei ein?! QUERO MAIS! rsrsrsr
    Bjooooo
    Carol

    ResponderExcluir